segunda-feira, 30 de maio de 2011

Clarice Lispector

Eu sei que nos acostumamos. Mas não devíamos.
Acostumamo-nos a morar em apartamentos de fundos, e a não ter outra vista
que não as janelas em redor.
E porque não temos vista, logo nos acostumamos a não olhar lá para fora.
E porque não olhamos lá para fora, logo nos acostumamos a não abrir de todo
as cortinas.
E porque não abrimos as cortinas logo nos acostumamos a acender cedo a luz.
E à medida que nos acostumamos, esquecemos o sol, esquecemos o ar,
esquecemos a amplidão....
Acostumamo-nos a acordar de manhã sobressaltados porque está na hora.
A tomar o café a correr porque estamos atrasados.
A ler o jornal no autocarro porque não podemos perder o tempo da viagem.
A comer uma sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque
já é noite.
A dormitar no autocarro porque estamos cansados. A deitar cedo e dormir
pesado sem termos vivido o dia.....
Acostumamo-nos a esperar o dia inteiro e ouvir ao telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem recebermos um sorriso de volta.
A sermos ignorados quando precisávamos tanto ser vistos.
Acostumamo-nos a pagar por tudo o que desejamos e o que necessitamos.
E a lutar, para ganhar o dinheiro com que pagar esses desejos e essas
necessidades.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagaremos mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que
pagar....
Acostumamo-nos à poluição.
Às salas fechadas, de ar condicionado e cheiro a cigarro. À luz artificial.
Ao choque que os olhos sofrem com luz natural.
Às bactérias na água potável.
Acostumamo-nos a coisas demais, para não sofrermos....
Em doses pequenas, tentando não perceber, vamos afastando uma dor aqui, um
ressentimento ali, uma revolta acolá....
Se a praia está contaminada, molhamos só os pés e suamos no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, sentamo-nos na primeira fila e torcemos um pouco o
pescoço.
Se o trabalho está difícil, consolamo-nos a pensar no fim-de-semana.
E se no fim-de-semana não há muito o que fazer, deitamo-nos cedo e ainda
ficamos satisfeitos porque temos sempre o sono atrasado.
Acostumamo-nos para não nos ralarmos com a aspereza, para preservar a pele.
Acostumamo-nos para evitar feridas.
Acostumamo-nos para poupar a vida. Vida que aos poucos se gasta, e que gasta
de tanto se acostumar, e se perde de si mesma.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Amor Epidérmico

Seus pais foram jantar fora e deixaram o apartamento só para você, seu namorado e a tevê a cabo. Que inconseqüentes! Em menos de um minuto vocês deixam a televisão falando sozinha e vão ensaiar umas cenas de amor no quartinho dos fundos. De repente, escutam o barulho da fechadura. Seu pai esqueceu o talão de cheques. Passos no corredor. Antes que você localize sua camiseta, sua mãe se materializa na porta. Parece que ela está brincando de estátua, mas não resta dúvida que entrou em estado de choque. Você diz o quê? Mãe, a carne é fraca.

A desculpa é esfarrapada mas é legítima. Nada é mais vulnerável que nosso desejo. Na luta entre o cérebro e a pele, nunca dá empate. A pele sempre ganha de W.O.

Você planeja terminar um relacionamento. Chegou à conclusão que não quer mais ter a seu lado uma pessoa distante, que não leva nada à sério, que vive contando piadinhas preconceituosas e que não parece estar muito apaixonado. Por que levar a história adiante? Melhor terminar tudo hoje mesmo. Marca um encontro. Ele chega no horário, você também. Começam a conversar. Você engata o assunto. Para sua surpresa, ele ficou triste. Não quer se separar de você. E para provar, segura seu rosto com as duas mãos e tasca-lhe um beijo. Danou-se.

Onde foram parar as teorias, os diálogos que você planejou, a decisão que parecia irrevogável? Tomaram Doril. Você agora está sob os efeitos do cheiro dele, está rendida ao gosto dele, está ligada a ele pela derme e epiderme. A gravação do seu celular informa: seus neurônios estão fora da área de cobertura ou desligados.

Isso nunca aconteceu com você? Reluto entre dar-lhe os parabéns ou os pêsames. Por um lado, é ótimo ter controle absoluto de todas as suas ações e reações, ter força suficiente para resistir ao próprio desejo. Por outro lado, como é bom dar folga ao nosso raciocínio e deixar-se seduzir, sem ficar calculando perdas e danos, apenas dando-se ao luxo de viver o seu dia de Pigmaleão.

A carne é fraca, mas você tem que ser forte, é o que recomendam todos. Tente, ao menos de vez em quando, ser sexualmente vegetariano e não ceder às tentações. Se conseguir, bravo: terá as rédeas de seu destino na mão. Mas se não der certo, console-se. Criaturas que derretem-se, entregam-se, consomem-se e não sabem negar-se costumam trazer um sorriso enigmático nos lábios. Alguma recompensa há de ter.



(Martha Medeiros)

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Velhice.

Desde que voltei de Israel, não tinha tido a oportunidade de sentir minha família maior reunida.
Não digo de pais e irmãos. Falo de tios, tias, primos, avós, tias avós, tios avôs, vizinhos, velhinhos, carinhos.
Hoje, na casa da minha vó, festejou-se os 69 anos de vida dessa pessoa mais amada do mundo.
Mas o que me fascinou foi a quantidade de cabeças brancas que povoavam a sala, aquelas pessoas cujas rugas denunciavam décadas e décadas de vida, quase um século.
Não consegui não notar, e alguma coisa aqui dentro queria me manter perto dessas senhoras, que mesmo sendo minha família, eu nunca nem tinha realmente conversado sobre alguma coisa.
Um dos meus melhores hobbies é sentar uma tarde inteirinha com a minha vó e escutar todas aquelas histórias, que mesmo já conhecidas, adoro escutar de novo, porque só ela sabe contar desse jeitinho tão detalhado e tão seguro.
Resolvi me sentar ao lado da minha bisavó e da irmã dela.
Minha bisa já não escuta de um ouvido e já não enxerga como deveria. E sentada ao seu lado, eu olhava para sua pele, para suas mãos, seus dedos gordinhos, e eu fiquei bem tentada a ficar fazendo carinho, como sempre faço com a minha avó, mas infelizmente, não tenho intimidade suficiente pra isso. Mais tarde foi até bom, porque ela reclamou que tava com dor nos braços e nas mãos, se eu começasse a apertar não daria certo.
A irmã dela, sentada ao lado, tá bem inteira. Magrinha, com a sua bengala, e com os olhos azuis funcionando muito bem.
Mas houve um detalhe que me surpreendeu: Em todos os meus quase 22 anos de vida, nunca tinha percebido o quanto ela é risonha. O quanto os olhos dela transmitem uma bondade tão relaxante, e o quanto eu queria poder saber mais sobre a vida dela.
Percebi que todas as velhinhas da sala tinham o mesmo comportamento.
Chegavam, escolhiam sua cadeira, e pá. Ficavam sentadas ali atééééé... E o mais engraçado foi escutar a conversa das duas. Imaginei décadas atrás, quando as duas ficavam fofocando sobre coisas da vida, e qual não foi minha surpresa quando percebi que essas senhoras mais outras se comunicavam sempre pelo telefone, uma coisa já tão rara hoje em dia.
E é aí que eu me pego pensando o que será da humanidade quando já não puderem mais usar internet pela visão corrompida pela idade? Quem vai fazer companhia pra quem?
Essas senhoras se acostumaram a ter contato de verdade com as pessoas, com os amigos, e isso não se perdeu. E a gente que se relaciona mais com o computador do que com as pessoas ao vivo? Mas essa já é uma discussão para outra prosa.
E me surgiu um pensamento mais urgente na cabeça de que um dia eu terei essa idade, e não sei se meus bisnetos sentarão ao meu lado como eu sentei ao lado delas. Não sei como estará minha saúde, meu humor, minha vida, e se vou ter orgulho do caminho que percorri.
Simplesmente me vi ali sentada, com saúde, no início da vida, imaginando se o tempo não passaria realmente voando.
Essa noite me fez pensar mais sobre o futuro.
Mas afinal, o que queremos do futuro?

domingo, 15 de maio de 2011

O vento das asas.

Nos meus descaminhos encontrei você me mostrando que é possível encontrar o caminho de volta, como aqueles homens que ficam na pista de decolagem do avião, com os sinalizadores, indicando para onde ir.
O túnel já me parecia longo demais, e já cheguei a pensar que aquela luz não passava de mera ilusão para que na hora certa você aparecesse enquanto resgata o melhor que há aqui dentro, que eu já nem lembrava.
A  vida tem dessas brincadeiras de testar os nossos limites, e quando pensamos que não há mais motivos para tentar, ela vem com a sua carta coringa e dá brilho a tudo em volta, reabastecendo o coração, curando feridas que teimavam em carne viva.
E eu me pergunto, assustada, onde eu estava todo esse tempo, que sinto que não vivi de verdade, apenas me arrastando, esperando o fim de cada dia, já desiludida com o mundo e com minha falta de vontade para tudo.
Que saudade sentia dessa energia boa, de esperar o início do próximo dia e desejando ao mesmo tempo que o agora não passe.
Tanto que eu queria voltar a ser quem eu era, você me ajuda a me redescobrir de novo, me provando que anjos existem. Reaprendo a ser feliz comigo mesma e ainda procuro discretamente onde se escondem suas asas. Quero estar pronta quando você decidir voar, e aprender como se faz.
Me faça voar bem alto ou não me faça tirar os pés do chão.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Laços.


Muitas vezes quando saio para algum lugar, gosto de observar os casais que se sentam por perto e analiso a relação entre eles. 
Há os que não param de rir, os que estão brigando, os que se sentam um do lado do outro e os que se sentam de frente.
Dá gosto de ver um casal que não pára de conversar, que de verdade gosta da companhia do outro.
Mas de todas as vezes que fiz alguma observação, não houve nada mais vazio do que ver um casal, que entra mudo e sai calado.
Não digo que um casal deva estar 24 horas conversando sobre alguma coisa, mas existem tipos de silêncio, alguns falam até mais do que palavras, quando rola o olho no olho, aquele clima no ar, e até uma sensação de plenitude quando não é necessário muitas palavras.
Mas esse silêncio de que falo é aquele sinônimo de indiferença, de rotina.
Geralmente não se olham muito, a distração é o cardápio, o celular, falam pouco, podem até rir, mas seja como for, não se percebe nenhuma conexão.
Em festas, vejo tanta gente se beijando, mas quase ninguém conversando pra valer, e se divertindo (falo de  casais).
O contato físico parece ser o ponto principal entre duas pessoas. 
Concordo que é importante, mas não o principal.
Algumas vezes não é preciso dar a mão de fato para sentirmos que estamos perto de alguém.
Quantas vezes vi pessoas abraçadas e senti que não estavam de verdade abraçadas?
Quanto de fato ele a conhece no momento em que se beijam?
A verdade é que a maior aproximação que você pode ter com uma pessoa está no que não se vê, mas se sente. Naquelas mãos dadas invisíveis, aqueles laços que vão se entrelaçando mais forte que corrente de aço.
Quando você está na sua casa, e ele na aula, mas vocês estão muito mais abraçados do que aquele casalzinho ali na frente.
O contato físico é o amor em seu formato mínimo, como já dizia o cantor do Skank.
O nosso dever é fazer dele algo muito maior, algo especial, e isso só é possível quando começamos do começo, quando conhecemos a essência do outro, e poder sentir que mesmo não caminhando de mãos dadas, os corações estão grudados ali dentro, cada um com a metade do outro.
Beijo por beijo, qualquer um pode beijar.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Deslumbrante.

Elas florescem só uma vez ao ano e a florada dura cerca de uma semana no Japão. É a maior festa debaixo das cerejeiras em flor. As pessoas se reúnem para admirar a beleza das flores, tirar fotos, fazer piqueniques.

A flor da cerejeira é símbolo de felicidade.


Por ser efêmera e sensível, a flor da cerejeira é uma lembrança poderosa de que a vida é passageira. 
Aproveito as cerejeiras em flor para um convite: 
viver o presente e apreciar a beleza sempre que ela aparecer.

domingo, 8 de maio de 2011

Hein?!

Mas e aí?
Como é que é?
Qual é o papo?
Bate ou não bate, rola ou não rola, sente ou não sente, larga o investe?
Ou ama ou não ama.
Assuma. Ou destrua.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Labirinto Emocional

Em horas como essa não me reconheço.
Perdida no campo de batalha, desviando das balas, visão turva inconvenientemente.
A inércia domina todo o corpo quando mais precisa mover.
Atingida por chumbo, pesado demais, grande demais, difícil demais.
Tudo já é mais do que deveria, e a alma está diminuída, pequena, encolhida, perdida.
Caminhos sem nenhum encanto, atalhos perigosos, portas sem saídas.
Nada de Sol, nada de Lua, nada de nada.
Quanto mais se anda, menos se chega.
Quanto mais se espera, menos se tem.
Quando a vida espera, a calma não vem.
Coração pula. Ameaça parar. 
E pula, estremece, castiga, condena, enfraquece.
Afinal, para que pular?
Por quem?
Não há ninguém.